A LEGISLAÇÃO DE TERRAS NO BRASIL E AS INFLUÊNCIAS PORTUGUESAS
Antonio Barbosa Lúcio[1]
RESUMO
Este texto possui por objetivo analisar as influências portuguesas na organização da legislação brasileira de terras e sua abrangência no processo de enraizamento das relações de poder. Preocupa-se, portanto, em demonstrar como as relações capitalistas que se faziam presentes no desenvolvimento das organizações sociais e no processo de consolidação dos interesses das elites econômicas foram, passo a passo, institucionalizadas. Destacaremos as legislações das sesmarias, no período colonial e, a Lei de Terras, no Império. Estas puderam estabelecer regras que consolidaram o modelo agrário brasileiro sob a perspectiva do latifúndio, inclusive proporcionando questões legais para efetivação de práticas aquém dos interesses nacionais, mas condizentes com as metas estabelecidas pelos grupos economicamente dominantes. Sua efetivação contribuiu para a manutenção do quase intocável latifúndio brasileiro.
Palavras-chave: legislação agrária, latifúndio, capital agrário-exportador.
Introdução
A legislação agrária no Brasil passou a ser organizada a partir dos interesses reais de suplantação de entraves econômicos, políticos e sociais que respaldavam a organização da sociedade brasileira. Os entraves estariam muito mais centrados na forma de organização do Estado liberal, com possíveis mudanças de orientação no decorrer do período colonial do que propriamente uma necessidade de regulamentação, sob o ponto de vista liberal. Ou seja, se no período do Brasil Colônia, não havia grandes necessidades de regulamentação voltada para as áreas agrárias, no Império, a organização econômica, social e política apontava alterações significativas, exigindo delimitação explicita do que se pretendia como modelo de sociedade. Nesse sentido, este texto possui por objetivo analisar as influências portuguesas na organização da legislação brasileira de terras e sua abrangência no processo de enraizamento das relações de poder. Sob o ponto de vista daquilo que Pires e Costa (2000) chamaram de capitalismo escravagista-mercantil, a legislação agrária brasileira tenderia a corroborar com as formas de dominação do capital em terras brasileiras, quer com sua consolidação utilizando-se o trabalho escravo, aparentemente destoante do sistema capitalista, quer posteriormente, com a ampliação do capital comercial e indústria. As formas de dominação estavam presentes, também, através da propriedade da terra e da consolidação da estrutura agrária brasileira.
Um conjunto de fatores favoráveis a organização capitalista no Brasil, propiciou a necessidade de manutenção da estrutura agrária sob a lógica da grande propriedade. Caio Prado Jr.(1981) em “Formação do Brasil Contemporâneo” ressalta elementos essenciais da vida material na colônia, tais como a grande lavoura, a monocultura e o trabalho escravo. Destaca ainda, que elementos secundários, como a pecuária, o setor de serviços e a economia voltada para a produção de gêneros alimentícios, estariam subordinados aos elementos essenciais, tendo em vista que suas atividades estariam voltadas, tanto para o mercado interno como externo. No primeiro caso, centrados na produção para a grande lavoura e, no segundo, subordinado aos preços internacionais. Além disso, a demanda de gêneros agrícolas existente na Europa estaria entre os fatores impulsionadores da expansão de produtos tropicais. Furtado (2004) enfatiza a importância da pressão das demais nações européias sobre Portugal e Espanha, voltadas para a necessidade de ocupar as terras para que efetivamente tivesse seus “direitos” garantidos; a experiência de Portugal com a produção de açúcar em outras colônias; a importância de fazer produzir para cobrir despesas centradas na defesa das novas terras; a demanda existente nas nações européias por açúcar e a existência de grandes capitais interessados em ampliar as exportações, dentre outros. Aliado aos fatores externos estava a política de mão-de-obra com a utilização de escravos, exigindo grandes quantidades, especialmente nas culturas voltadas para exportação e a existência dessa mão-de-obra disponível. Entretanto, o que efetivamente contribuiu para que houvesse crescente apropriação das terras, estaria no fato de que a utilização de grandes capitais predominou diante os demais fatores, tendo em vista a necessidade de vultosos recursos para o transporte dos escravos, compra de maquinarias necessárias a produção de açúcar e a existência da possibilidade de grandes propriedades necessárias a produção de produtos tropicais.
A colônia portuguesa na América foi influenciada, também, pela forte dependência que Portugal foi adquirindo da Inglaterra. Sua hegemonia, aos poucos passou a ser apenas aparente, tendo em vista que os ingleses, através de diversos pactos passaram a determinar quais principais medidas, Portugal poderia realizar. Bausbaum (1957), fala da debilidade econômica portuguesa e de sua dependência em relação à Inglaterra, além de se sobressair apenas em relação aos produtos importados. Esta interferência externa passa, também, de certa forma, determinar a consolidação de um aparato legal que incidisse sobre as relações internas. Sob a lógica liberal, tendia a prevalecer os interesses externos sobre os internos, e estes, passaram a organizar-se sob o predomínio do setor agrário-exportador. Este, também, passou a influenciar o que efetivamente, seriam as relações de trabalho assalariado, a persistência das grandes propriedades, a exclusão da grande massa de trabalhadores do acesso a terra. Apenas no século XIX, segundo Furtado (2004) a influencia inglesa diminuiria, mas em contrapartida houve a ampliação crescente da dependência dos Estados Unidos.
1.1 A legislação agrária brasileira: o período colonial
A necessidade de elevação de produtos para exportação, no período colonial brasileiro, levará o governo português[2], a criar a Lei de Sesmarias, e determinar a obrigatoriedade da prática da lavoura e o semeio da terra pelos proprietários, arrendatários, foreiros e outros. O que estava em jogo era a grande quantidade de terras existentes e a pouca lucratividade que ela representava, tendo em vista que a Coroa portuguesa, necessitava, para manter seus custos, dos produtos da exportação. Além disso, o comércio europeu, também precisa de matéria-prima para ampliar seus negócios. Assim, a inexistência de produção considerada suficiente, passou a ser estabelecido a obrigatoriedade de produzir, mesmo antes da conquista de terras brasileiras. Determinava que
todos os que tiverem herdades próprias, emprazadas, aforadas, ou por qualquer outro título que sobre as mesmas lhes dê direito, sejam constrangidos a lavrá-las e semeá-las. Se por algum motivo legítimo as não puderem lavrar todas, lavrem a parte que lhes parecer podem comodamente lavrar, a bem vistas e determinação dos que sobre este objeto tiverem intendência; e as mais façam-nas aproveitar por outrem pelo modo que lhes parecer mais vantajoso de modo que todas venham a ser aproveitadas(LEI de 26/06/1375 Apud BRASIL, 2007:Tomo III: 43).
Foi sob a lógica do produtivismo para comercialização de produtos para a metrópole que a legislação sobre a colonização brasileira pôde ser realizada. havia a determinação explicita para tornar as terras produtivas, exigiam, inclusive, a suspensão do direito de propriedade ou de concessão. Estava em jogo, a lógica necessária para a produção agro-exportadora. Entretanto, havia sérias dificuldades para que tal situação ocorresse devido os altos custos da produção. Não bastava, portanto, a determinação real para que os proprietários agrários passassem a produzir. A produção e sua regulação estavam dependentes da situação externa, de financiamentos, dos preços dos transportes e de mão-de-obra, de técnicas necessárias e adequadas. Estes fatores influenciaram negativamente ao processo de ampliação de culturas, tendo em vista a oscilação do mercado externo.
No processo de consolidação da produção agrária-exportadora, no Brasil, a coroa portuguesa, salvo as determinações voltadas para a concessão das terras, não se preocupava em regulamentá-las quanto à propriedade ou a quantidade que poderia ser utilizadas pelos produtores, desde que estes, fizessem cultivar as propriedades. Esta era a grande inquietação que persistia. Por parte dos proprietários agrários em todos os seus níveis, não estava, também em questão a propriedade da terra, tendo em vista que a unidade produtiva, não era a terra, mas o escravo quer o negro quer o indígena. Possuir escravos em quantidade elevada significava maior poder de cultivo das propriedades. Assim, os documentos que se seguem, durante o período colonial brasileiro, passam a enfatizar o aumento da produção e a necessidade de cultivo. Estava em jogo, também o comércio de escravos e os altos custos dos transportes pois constituíam custos elevados podendo, inclusive, inviabilizar a produção.
Daí, longo período sem devida regulamentação da propriedade agrária. No século XVII, na Carta Régia de 27 de Dezembro de 1695 enfatiza a necessidade, dos representantes de Portugal em verificar o cumprimento do dispositivo legal que determinava o cultivo das terras. É importante salientar que a Revolução Industrial inglesa despontara no cenário mundial; o processo de colonização da América do norte e a colonização espanhola também contribuíam com concorrência, no Brasil, de produtos tropicais. A Holanda, França e Inglaterra como potências econômicas, passavam a exigir parte do que consideravam detentoras de direitos (FURTADO, 2004). Coube ao governo português tomar medidas para apaziguar tais situações. Preocupava-se, portanto, com o processo de povoamento e a ampliação do cultivo, tendo em vista que apenas aparatos de guerras eram insuficientes. Tais medidas eram explicitadas, através da legislação voltada para sanar os problemas. Assim, a restrição de quantidades de terras, tinha por meta, estabelecer critérios que favorecesse maior equidade na distribuição, nos seguintes termos:
Dom João de Alencastro, amigo. Eu El-Rei vos envio muito saudar. Por ser informado que nas datas das terras de sesmarias desse Estado se tem usado de maneira que a maior parte dessas datas estão nulas por vários fundamentos assim pela largueza com que se concedem, como pelo uso que dão às terras os mesmos sesmeiros sem que na repartição tenha havido aquela igualdade que convém a meu serviço, também comum aos moradores desse Estado de que procede o não se cultivarem as terras pela maior parte e acharem-se muitos moradores sem data alguma não se observando o que sobre elas tenho ordenado para que se não dê a cada morador mais que quatro léguas de terras (CARTA RÉGIA, EM 27/12/1695 Apud Brasil,2007: Tomo III: 59).
A determinação de Portugal em enfatizar a necessidade de produção, estava também centrada no povoamento. Preocupava-se, com as grandes propriedades, enfatizando a necessidade de limitação para aqueles que não pudessem cultivar. Ao limitar em 4(quatro) léguas (2400 ha), previa-se que poderia haver maior equidade entre a distribuição e, claro, o necessário cultivo. Mais uma vez, coloca-se em questão que quem não cultivar, deve perdê-las.
Fui servido ordenar aos moradores digo, fui servido ordenar aos Ouvidores criados de novo que cada tini nas terras de seus distritos examinem se as sesmarias que se tem dado de maior cumprimento de quatro léguas e uma de largura, se estão cultivadas pelos donatários ou por seus colonos e foreiros em parte ou em todo para que as cultivadas se conservem e as que o não tiverem se julguem, por vagas para se repartirem por outros moradores segundo as suas possibilidades, de que vos aviso para o terdes assim entendido (CARTA RÉGIA, EM 27/12/1695Apud Brasil,2007:Tomo III: 59).
Mas, apenas dois anos depois, em carta regia de 7 de dezembro de 1697, determina o governo de Portugal, que as sesmarias concedidas, sejam limitadas a 3(três) léguas, enfatizando, novamente, a necessidade da produção e que em quantidade elevadas, não haveria condições de produzir que “é o que se entende pode uma pessoa cultivar no termo da lei porque no mais é impedir que outros povoem e que os que pedem e alcançam não cultivam (CARTA RÉGIA, em 7/12/1697 Apud BRASIL, 2007: Tomo III: 60)”.
Explicitava, portanto a preocupação de Portugal com o processo de povoamento, que não estaria sendo realizado a contento, tendo em vista a concentração de terras. Além disso, mesmo forçando a saída de portugueses para o Brasil, a condição não era semelhante à Inglaterra, no processo de povoamento norte americano. No Brasil, a cultura do açúcar exigia grandes contingentes populacionais em amplas quantidades de terras, diferentemente de culturas de pequeno porte, como as realizadas nas colônias inglesas norte americanas. França e Inglaterra viam na colonização européia da Antilhas, o caminho certo para abarcar os domínios espanhóis, já no início do século XVII(FURTADO, 2004). A partir de meados do século XVIII, ocorrendo o aumento dos preços dos escravos, ocasionado pela expansão do ouro, passou a influenciar a economia açucareira, tendo em vista a elevação do preço da mão-de-obra. A atividade canavieira, não se tecnificando, para se expandir, necessitava de maiores quantidades de terras e de escravos. Essa condição, não estando favorável, dificultou a expansão canavieira e, claro, a necessidade por parte do governo português de ampliar a produção.
Sendo assim, foram tomadas medidas que objetivavam tais finalidades. Através do alvará de 3 de março de 1770, já havia a preocupação em delimitar procedimentos para a concessão de sesmarias, determinando especificamente quem poderia concedê-las em nome de Portugal. Entretanto, parecia que a situação não seria resolvida. A concessão de terras existia, mas as sesmarias não eram cultivadas. Esta situação levou o governo português, a estabelecer normas mais rigorosas, sendo o que me parece, o alvará de 1795, o mais consistente voltado para organização de terras no período colonial. Esta legislação, de forma semelhante às citadas acima, passava a exigir mudanças na forma como estava sendo conduzido o processo de distribuição de terras. Esclarecia a ausência de regimento até então que regulamentasse, alertando para os constantes abusos existentes. Estava claro, portanto, que o governo português, até então, não conseguia, de fato, estabelecer normas que fossem seguidas por seus súditos. Se a mão-de-obra encarece, não seria a legislação que iria coibir os abusos existentes. A terra, aos poucos, passa a ser o lócus privilegiado para manutenção do status quo, mesmo que ainda prevaleça o escravo como a principal ferramenta de produção. Houve, portanto a partir da Lei de 1795, a preocupação de regulamentação daquela que viria, futuramente, determinar sob que condições os grupos econômicos iriam se estabelecer: o domínio das terras. Esta Lei destacava que a distribuição de terras em sesmarias ocorria a partir de documentos dos antigos donatários. A preocupação da coroa portuguesa ia além, enfatizando a necessidade de legislar e de maior e melhor distribuição de terras, inclusive, condenando o que foi chamado de distribuição desigual de terras, nos seguintes termos:
(...) conseqüências não menos danosas, e ofensivas do Público Benefício, e da igualdade, com que devem, e deviam ser em todo o tempo distribuídas as mesmas terras pelos seus Moradores, chegando a estado tal esta irregular distribuição, que muitos destes Moradores não lhes têm sido possível conseguirem as sobreditas Sesmarias, por Mercê Minha, ou dos Governadores, e Capitães Generais do dito Estado, à força de objeções oposta por que sem algum Direito não deveria impugná-las; outros pelo contrario as têm apreendido, e apreendem, e delas se apossam sem Mercê, e sem licenças legítimas, que devem ter para validarem os Títulos das suas Possessões, passando a tal excesso tão repreensíveis abusos a este respeito, que até a maior parte das mesmas Sesmarias, ainda as que estão autorizadas com as competentes Licenças, Cartas, e Confirmações, jamais chegam a ser obrigados por muitas, e repetidas Ordens, que se têm expedido a todos aqueles Domínios a este sim, são úteis, quanto prejudicial a falta de observância, que elas têm tido no mesmo Estado do Brasil, de cuja falta, e da sua tolerância tem notoriamente resultado no Foro tantos, e tão odiosos Litígios, entre uma grande parte dos ditos Meus Vassalos, quanto o mostra a experiência (...) (Alvará de 5/10/1795 Apud BRASIL, 2007: Tomo III: 48).
Não significava que a coroa portuguesa, pretendia ampliar a participação dos súditos ao acesso as terras, mas teria sido forçada diante as constantes investidas de outras potencias econômicas. Portugal precisava ampliar sua condição de monopolizador da colônia, tendo em vista as ocupações já existentes, em períodos anteriores, pela Holanda e a França e tentativas da Inglaterra. A determinação legal, além de causar a devida demarcação das terras, preconizava a pena de comisso, ou seja, a perda de domínio e, diferentemente de questões semelhantes na atualidade, o simples desrespeito a demarcação das terras, já apontava essa necessidade. Além disso, chamava especial atenção para que a concessão de novas sesmarias, “nunca mais poderá confirmar Sesmaria alguma, sem que se lhe apresente, junto com a Carta dela, Certidão legal, e autêntica, de se haver feito, e passado em Julgado a demarcação, que respeita a cada uma das ditas Sesmarias (ALVARÁ de 5/10/1795 Apud BRASIL, 2007: Tomo III: 48). Entretanto, não estabelecia mudanças quanto às sesmarias existentes nem mesmo em relação à quantidade de terras que cada sesmeeiro tivesse adquirido. Coibiam-se possíveis abusos futuros, ao mesmo tempo em que permanecia a condição das terras até então existentes, admitindo-se, a própria falta de legislação pertinente. Mas, enfatizava o fato da demarcação e os que assim não o fizessem, que as terras retornassem ao poder real. No item VI, do referido alvará, determina que as terras próximas a vilas fossem distribuídas, notadamente no litoral, sesmarias de até meia légua, destacando distribuição eqüitativa entre “todos os seus moradores”, inclusive cogitando a possibilidade de redistribuição entre os habitantes das já existentes (item VII). O item XI estabelece a quantidade máxima que poderia possuir um sesmeeiro, estipulando em 01(uma) sesmaria, para aqueles que possuindo quantidade de trabalhadores considerados insuficientes. Alertava-se, também, que a condição era exigida, inclusive em caso de herança ou doação. Ou seja, se não tivesse condições para a produção, não poderia ampliar a sua propriedade. Determinou ainda, mais de uma concessão, desde que houvesse condições de cultivo. Dar-se-ia um prazo de dois anos para a devida comprovação de que havia possibilidades de cultivos, inclusive com a quantidade de escravos adequadas ao trabalho. O item XII, enfatiza que quem não pudesse cultivar, seria no prazo de 2(dois) anos, obrigado a vendê-la ou repassar para quem fosse capaz de cultivar, ou ainda, deveria devolver a coroa portuguesa. O item XIII, fala da existência de sesmarias sem a devida qualificação para tal, ou seja, terras sem a existência de documentação legal. Passa, também, a estabelecer a sua devida regularização, desde que comprove o critério de produção com escravos suficientes. O item XVI determina que não sejam concedidas sesmarias em terras que não estejam vagas. Atentava-se para o fato de ocorrer duplicação de sesmaria, com pessoas diferentes. Ou, como ocorre atualmente, com a grilagem.
Através da legislação acima, estavam postas as condições para o efetivo controle de terras. Incluíam-se, assim, aqueles sesmeeiros que não possuísse tais condições, reordenando, de certa forma, as relações agrícolas existentes. Regulava-se, tanto a concessão como as formas que ela deveria ocorrer e, ao mesmo tempo, privilegiava-se aqueles possuidores de escravos e com condições financeiras suficientes para alavancar a produção, com acesso a quantidades maiores de terras, sua ampliação através de heranças, tendo apenas que confirmar a possibilidade de ampliação da produção. Note-se que até então, o produto de maior condição exportadora era o açúcar e este necessitava de grandes quantidades de terras e de escravos, favorecendo a existência de grandes propriedades e a quase inexistência de pequenas áreas voltadas a produção agrícola de subsistência. Esta teve que adentrar para áreas não cultivadas com cana-de-açúcar, a exemplo do agreste e sertão nordestinos e, no centro sul, para áreas não cultivadas com cana-de-açúcar, mas que passariam a servir como suporte a produção do ouro.
O século XVIII seria, portanto, marcado pelo reordenamento das relações agrícolas no Brasil, com a crescente estagnação da economia açucareira nordestina, a emigração do excedente da população livre para o interior do país e, a concentração do trabalho escravo na busca de ouro. Ao mesmo tempo, a produção de subsistência, no nordeste, estava voltada para o setor canavieiro, tanto de alimentos como as atividades criatórias. No centro-sul, a partir de São Paulo, amplia-se a capacidade produtiva visando subsidiar, em alimentos, a procura por ouro. Se a produção de alimentos não exigia grandes quantidades de terras, a economia criatória, especialmente de gado bovino, não poderia dispensar tal condição, ao mesmo tempo em que necessitava de pouca mão-de-obra. Ou seja, não carecia em quantidades elevadas, tanto escravos como homens livres. Mas, pôde servir, inclusive, para favorecer a interiorização do Brasil. Entretanto, a produção de alimentos como a criatória, era impulsionadora das economias exportadoras quer o açúcar, o ouro, o algodão ou o café.
Ao final do século XVII e durante grande parte do século XVIII, a economia brasileira centrada especialmente na produção de açúcar passou, diante as condições externas, a definhar. Sua ampliação estava exclusivamente baseada na produção extensiva, sem mudanças significativas que proporcionassem o aumento da produção e da produtividade. Portugal, por outro lado, via cada vez mais sua dependência em relação à Inglaterra se enraizar. Em 1703, através do tratado de Methwen, se vê sufocado pela economia inglesa, ao mesmo tempo em que necessitava do acordo para viabilizar a sua débil economia (RIBEIRO, 2000). Outras medidas são tomadas, voltadas para mudanças na organização do Brasil, tais como: em 1753, o Marquês de Pombal extinguiu a escravidão dos índios no Maranhão; 1755, a libertação dos indígenas em todo o Brasil e, em 1760, a expulsão dos Jesuítas e o fim das capitanias hereditárias. Note-se, até então não havia menção referente às terras ocupadas pelas populações indígenas. Segundo Thomas (1982) a legislação já em 1595, tornava os jesuítas responsáveis pelos índios e, a de 1596, os considerava instrumento de paz e prosperidade. Entretanto, o conflito entre colonos e jesuítas, em 1640, ocasionou a expulsão destes últimos de São Paulo e Rio de Janeiro. Pouco mais de um século depois, o Marquês de Pombal os expulsa do Maranhão. Se a legislação era omissa quanto às terras indígenas, não ocorria quando a questão passava a ser o conflito entre a economia portuguesa no Brasil e as formas como os jesuítas conduziam essa economia.
A economia colonial, pelos fatores acima apontados, necessitava redimensionar suas práticas para além das então existentes. Mesmo que problemas existentes na produção de açúcar e, por sua vez, na estagnação da econômica interiorana voltada para a economia de subsistência centrada na produção de alimentos e a criação de animais, especialmente, o gado bovino, estivesse em franca decadência.
O século XIX seria aquele decisivo para a economia brasileira. A decadência do açúcar como principal atividade econômica do século XIX, a importância da cultura do algodão e do tabaco e a também decadente economia aurífera, apontava para um Brasil que tinha na agricultura sua sobrevivência.
1.2. Os caminhos da legislação agrária no Brasil Império
Um panorama na primeira metade do século XIX, no Brasil, é apresentado por Wernek Sodré da seguinte forma:
Já havíamos constituído uma formação sociogênica apta a governar-se. A fortuna particular argamassa interesses sólidos e vinculados à terra. O comércio abrira perspectivas alvissareiras para os dias em que se fizesse de nação a nação, sem a tutela e a interferência lusitana. A sociedade construíra a sua hierarquia. No tope, havia os senhores dos latifúndios. Os donos da riqueza agrária. A gente que ia constituir a nobreza e os titulares do segundo império. No meio, uma massa ainda confusa de rodeadores dessa riqueza e de habitantes das cidades, no início já a base urbana da nossa civilização, até aí puramente agrária. Essa massa se compunha de gente de todas as origens. Era a resultante do caldeamento racial. Era a resultante da dispersão da riqueza, da sua circulação que, embora e lenta, forçava já o aparecimento desse embrião de classe média, cerne e índice das sociedades. No fundo, estava a escravaria e a indiada (SOBRÉ, 2004:26).
O autor acima fala da constituição da sociedade brasileira. Sua forma de organização estaria sendo delineada, não apenas prioritariamente entre as elites econômicas rurais e a grande maioria de escravos. As chamadas camadas médias surgem nos centros urbanos e o impulso escravocrata ainda se fazia presente, mesmo a partir das ideais liberais que impulsionava para o contrário.
No campo técnico, continuava-se mantendo práticas do inicio da colonização, tendo a queimada como principal forma de utilização da terra, sem a utilização de outros mecanismos já conhecidos, a exemplo da irrigação; inércia no desenvolvimento industrial, mesmo aquelas ligadas a agricultura; manutenção da tração animal como força motriz dos engenhos em detrimento dos engenhos d’água; não utilização de técnicas modernas para os tratos culturais e beneficiamento de algodão etc. (PRADO JUNIOR,1976). Estes fatores explicitavam a debilidade econômica da agricultura em relação a outras regiões européias ou mesmo norte-americana.
No campo internacional, a dependência em relação à Inglaterra se fazia presente. Com a vinda da família real para o Brasil e a abertura dos portos, em 1808, os ingleses souberam usufruir de seu poder sobre Portugal para acentuar a dependência econômica da principal colônia portuguesa. O Decreto de 22/06/1808 passou a estabelecer que a concessão de sesmaria devesse ocorrer através de ordem expressa do Rei. O decreto de 25/11/1808 ampliava a possível participação de estrangeiros residentes no Brasil, o acesso a terras. Estes dois decretos, de certa forma, visavam o controle real sobre as terras. Estas, sob a lógica da propriedade privada, mas com o conseqüente distanciamento do governo português em suas concessões, buscou-se, portanto, garantias de quem, de fato, poderia possuí-las. Antecipava-se, portanto, a lógica de apropriação da Lei de 1850. O decreto de 25/11/1808, estabelecia que
sendo conveniente ao meu real serviço e ao bem público, aumentar a lavoura e a população, que se acha muito diminuta neste Estado; e por outros motivos que me foram presentes: hei por bem que aos estrangeiros residentes no Brasil se possam conceder datas de terras por sesmarias pela mesma forma, com que segundo as minhas reais ordens se concedem aos meus vassalos, sem embargo de quaisquer leis ou disposições em contrário (Decreto de 25/11/1808 Apud BRASIL, 2007: Tomo II: 23).
Sendo constantemente pressionado pela Inglaterra e, já prevendo o possível fim da escravidão brasileira, mas que o governo imperial posterga pelo maior tempo possível, a lógica desenvolvimentista brasileira ia, aos poucos, sendo deslocada do escravo como principal atividade econômica, para a terra. Os capitalistas latifundiários, gerados, por vezes, aquém da legislação que limitava em 3 léguas se configuravam o grupo econômico que dava sustentação ao governo. O alvará de 1795, observado acima, ao ampliar a possibilidade de ampliação para além de 3 léguas, possibilitou, também, a regulamentação dos latifúndios e a condição de ampliação de domínios. Ao mesmo tempo, também impulsionou “diferenciação histórica dos latifúndios em dois tipos: os que tiveram sua origem em antigas sesmarias e aqueles latifúndios em escala muito maior [...] que se originaram neste período (LINHARES E SILVA, 1981: 32)”.
Se até então, a legislação, de certa forma, era omissa diante a propriedade agrária, foi com a resolução de 17/07/1822, confirmada pela provisão de 23/10/1823, estava sendo delineada a forma de propriedade da terra que deveria perdurar pelos séculos subseqüentes. Esta resolução suspende a concessão de novas sesmarias, mas, prevê a continuidade da posse da terra aqueles que já a tivesse fazendo uso. Ou seja, manteve-se o domínio, sem maiores questionamentos, inclusive em relação à dimensão da propriedade ou a delimitação das áreas que os latifundiários tinham diretos. Note-se que até então, conceder sesmarias era uma prerrogativa da Coroa Portuguesa e de seus representantes legais. A própria Coroa apontava, com vimos acima, a dificuldade de delimitar as áreas, o cultivo da propriedade, e de possíveis posses “indevidas”. Além disso, a própria dimensão territorial brasileira, apontava para dificuldades de comunicação entre as províncias que pudessem interferir decisivamente no cumprimento do que era estabelecido na Lei de regulamentação das sesmarias. Optou-se, portanto, para a manutenção do que vinha ocorrendo tradicionalmente.
A Constituição de 1824, criada sob a força absolutista, centrada na hegemonia de latifundiários e sob a pressão externa, passou a estabelecer:
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte: XXII – É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem público legalmente verificado exigir o uso e emprego da Propriedade do Cidadão, será ele previamente indenizado do valor dela. A Lei marcará os casos em que terá que lograr esta única exceção, e dará as regras para se determinar a indenização (ART. 179/XXII. CF/de 25/03/1824 Apud BRASIL, 2007: Tomo I: 27).
Enterrou-se, definitivamente, a concessão de terras sob o regime de sesmaria. E, durante 28 anos, não houve preocupação de regulamentar como ocorreria a apropriação das terras, fato que ocorreu apenas em 1850. A propriedade privada passou a vigorar em todas as constituições brasileiras, tendo em vista a sua orientação liberal. Sua influência, a partir das constituições liberais da Europa, não seria mera coincidência, mas a prática corrente de manutenção do status quo de seus representantes imediatos: o capitalista agrário-exportador. Ao mesmo tempo, estabelecia quem poderia possuir os direitos que a recém Constituição estabelecera: os cidadãos brasileiros. Excluía-se, portanto, a maioria escravizada, os índios e alguns tantos outros que não possuíam poder aquisitivo. O escravo, como uma mercadoria, também estava no bojo de proteção da propriedade. Portanto, não era cidadão, mas mercadoria inviolável, pertencente aos proprietários agrários. Já no projeto de Constituição de 1823, segundo Sposito (2006), questionava-se se o índio seria cidadão ou mesmo brasileiro. Esta questão. Segundo o autor, demonstrava que havia um fosso entre a sociedade real e a nacional pretendida:
Havia um fosso entre a sociedade real, existente em território que se pretendia nacional, e aquela sociedade que passaria a compor, a partir de então, a nação brasileira. Estas sociedades, a ‘ real’ e a ‘nacional’ não coincidem e essa característica não deve ser entendida como contraditória com o ideal de igualdade pretendido pelo Estado nacional, apesar de evidentemente conflituosa (SPOSITO, 2006:18-19).
Tanto não eram contraditórias que as divergências geradas a partir do projeto de Constituição de 1823 e a Constituição de 1824, não apenas em relação aos índios, não foram tais questões que ocasionaram maiores problemas para a aprovação do projeto de 1823, mas sim, as relações de poder. Na Constituição aprovada em 1824, ficava claro, que apenas aqueles que com recursos financeiros, possuiriam prerrogativas de cidadão brasileiro. A igualdade pretendida, estava entre os possuidores de bens e, excluíam-se os não possuidores. Se entre 1822 a 1850, não havia legislação específica que estivesse centrada em quem seriam os possuidores de terras, já havia indícios a quem, de fato, elas seriam distribuídas. Ao excluir indígenas, escravos, grande parte da população branca sem recursos dos direitos de participação da vida pública, estabelecia-se, com antecipação, a forma de organização social que deveria vigorar. Sposito(2006), destaca que o liberalismo do século XIX, mesmo quebrando os fundamentos da sociedade estamental, não o fazendo sobre o regime de igualdade irrestrita a todos os membros da sociedade, mas sob a lógica de igualdade jurídica.
A legislação de terras existentes até então em consonância com as demais que formaram a composição jurídica brasileira, era reflexo e refletia as relações de dominação até então existentes: a subordinação das classes inferiores sob os ditames dos interesses gerais, centrados na lógica de sujeição ao capital internacional. A manutenção do sistema escravagista, na contramão das mudanças ocorridas na Europa, nos Estados Unidos e, nos demais países da América Latina, impulsionadas pelo capitalismo liberal, apontava quanto à forma de condução das políticas internas. Esta situação tenderia ser ampliada devido ao fato de que o Brasil, aos poucos, transferia sua principal relação econômica com a Inglaterra para os Estados Unidos, ou seja, “a medida que o café aumenta sua importância dentro da economia brasileira, ampliam-se as relações econômicas com os EUA (FURTADO, 2004:44)”. Coube ao Brasil, portanto, a manutenção do escravismo como forma de postergação dos interesses locais. Pretendia-se a possível libertação dos escravos, sem a necessária perda de mão-de-obra.Daí por que o Brasil, sucessivamente, passa a não cumprir os acordos realizados com a Inglaterra desde 1810 que visavam o fim do trabalho escravo, apenas efetivando-o legalmente, em 1850. Coincidência ou não justamente com a promulgação da Lei de Terras. Manteve-se, portanto, as relações de exclusão social, não apenas dos escravos, mas também de grande parte da população livre. Sob essa lógica de exclusão sumária, estava em jogo, em um país com a quase exclusividade agrária, o controle das terras. Esta situação vai ser sanada, com a Lei Imperial nº 601, de 18 de setembro de 1850.
A Lei vai representar, no Império, a consolidação do sistema de propriedade e, mais precisamente, da propriedade agrária sob o domínio de um grupo seleto que historicamente vinha se construindo, através do sistema de sesmaria e da transmissão das terras, através de heranças. Fortalece, também, a forma como foi conduzida a apropriação de terras, a partir de 1822, quando o sistema de sesmaria foi abolido e, em seu lugar, não foi estabelecida outra legislação que constituísse normas para aquisição de propriedades nem a sua demarcação.
Já no artigo 1º da Lei de Terras, fica estabelecida a aquisição de terras devolutas apenas sob a compra. Ao excluir a possibilidade de que a aquisição de terras possa ser realizada por doação, como até então vinha ocorrendo, objetivava-se que toda a população que não possuísse recursos fosse excluída do acesso. Permite-se, apenas que terras de fronteiras com o Império pudessem ser distribuídas gratuitamente até o limite de 10 léguas. Ao mesmo tempo, no art.3º, a Lei passou a determinar quais as terras que poderiam ser passíveis de compras:
Art. 3º São terras devolutas: § 1º As que não se acharem aplicadas a algum uso público nacional, provincial, ou municipal. § 2º As que não se acharem no domínio particular por qualquer título legítimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em comisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura. § 3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que, apesar de incursas em comisso, forem revalidadas por esta Lei. § 4º As que não se acharem ocupadas por posses, que, apesar de não se fundarem em título legal, forem legitimadas por esta Lei (LEI n.601 de 18/09/1950 Apud BRASIL, 2007: Tomo I: 75-6).
Ou seja, a propriedade agrária passou a ser legitimada como propriedade inviolável. A inviolabilidade, incluía inclusive, todas as propriedades, mesmo aquelas que não obedeciam a lei de sesmaria, que determinava limites de áreas. Ficou estabelecida a legalidade. Por decreto, todos os proprietários, passaram a usufruir das terras já “conquistadas” e, aqueles que pudessem comprar mais, poderiam fazê-lo, sem limites estabelecidos em Lei. Excluiu-se, não apenas a grande maioria da população escrava ou mestiça, mas, inclusive, os nativos. A estes, foi reservado no art.12 que “O Governo reservará das terras devolutas as que julgar necessárias: 1º, para a colonização dos indígenas”. Esta situação apenas vai ser parcialmente remediada, a partir da regulamentação da Lei com o Decreto 1318 de 30/01/1854 que veremos adiante. Por outro lado, o art.18 estabelecia a autorização para a vinda de colonos livres para serem empregados. Estabelecia-se assim, condições favoráveis para substituição do escravo. Entretanto, não foi prevista qualquer cláusula voltada para esse contingente populacional. A lei determina, também, a criação da Repartição Geral de Terras Públicas, que seria responsável pela demarcação das terras devolutas, formando assim, o aparelho burocrático que daria sustentação a efetivação da legislação.
O certo foi que apesar da determinação legal, a demarcação das terras estabelecidas na legislação, a partir de 1854, não ocorreu como se previa. O Decreto 1318 de 25/01/1854 que regulamenta nos termos da Lei de 1850, no art.22 reforça a possibilidade de validação das terras adquiridas por doação e “considera como não devolutas todas as terras, que se acharem no domínio particular por qualquer título legítimo”. Na regulamentação, buscou-se, repetir grande parte da Lei anterior e, estabelecer critérios para a regulamentação.
Art. 24. Estão sujeitas à legitimação: § 1º As posses que se acharem em poder do primeiro ocupante, não tendo outro título senão a sua ocupação.§ 2º As que, posto se achem em poder de segundo ocupante, não tiverem sido por este adquiridas por título legítimo. § 3º As que, achando-se em poder do primeiro ocupante até a data da publicação do presente Regulamento, tiverem sido alienadas contra a proibição do art. 11 da Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850(DECRETO 1318 de 30/01/1954 Apud BRASIL, 2007: Tomo II: 28-9).
.
Ou seja, tudo passa a ser permitido, desde que privilegiasse os proprietários de terras. Entretanto, de certa forma, inova em relação às terras destinadas aos índios. Nos artigos 72 e 73, passa a estabelecer terras destinadas para a colonização dos “selvagens”. Seriam destinadas das terras devolutas parte para a colonização. Subtende-se que estas não poderiam ser vendidas, pois seriam destinadas a aldeamentos indígenas. “Serão reservadas terras devolutas para colonização, e aldeamento de indígenas nos distritos, onde existirem hordas selvagens (DECRETO n.1318 de 30/01/1954 Apud BRASIL, 2007: Tomo II: 35)”.
Entretanto, tanto a Lei de Terras de 1850, como a sua regulamentação, em 1854, não fazia referência, pela lógica de colonização, àqueles que não eram considerados selvagens. Na verdade, deixou por conta dos fazendeiros ou seus indicados, a incumbência de estabelecer quais seriam essas terras e a dimensão que iriam abranger, apontado os artifícios legais que deveriam ser instituídos, nos seguintes termos:
Art. 73. Os Inspetores e Agrimensores, tendo notícia da existência de tais hordas nas terras devolutas, que tiverem de medir, procurarão instruir-se de seu gênio e índole, do número provável de almas, que elas contêm, e da facilidade, ou dificuldade, que houver para o seu aldeamento; e de tudo informarão o Diretor-Geral das Terras Públicas, por intermédio dos Delegados, indicando o lugar mais azado para o estabelecimento do aldeamento, e os meios de o obter; bem como a extensão de terra para isso necessária (DECRETO n.1318 de 30/01/1954 Apud BRASIL, 2007: Tomo II: 35).
O governo brasileiro, por outro lado, garantiu que as terras consideradas devolutas, não podendo ser vendidas passariam a pertencer ao Estado. Incluíam-se, também as terras indígenas. Estas, não pertenciam aos índios, mas ao Estado e, este, por sua vez, determinava quem poderia ter acesso. Entretanto, a inovação contida no Decreto acima, estaria em estabelecer a possibilidade de que estas terras não fossem vendidas e que pudessem ser utilizadas pelos índios. O problema seriam aqueles que não se sujeitasse ao processo de colonização. Observe que colonizar significava integração ao conjunto da sociedade brasileira, aos interesses dos grupos controladores do Estado e a lógica de privatização do território brasileiro.
Entretanto, o art. 2 da Lei de Terras de 1850, estabelecia punição para “os que se apossarem de terras devolutas ou de alheias”. A possível punição parecia mais vinculada a terras, vinculadas as sesmarias anteriores a Lei e as que estivessem sob o domínio do Estado. Entretanto, em relação às devolutas, estabelecia-se, no art. 18 do decreto de 1854, a medição, por funcionário especialmente designado e, previa-se, no art. 19 a possibilidade de “se os proprietários, ou posseiros vizinhos se sentirem prejudicados, apresentarão ao Agrimensor petição em que exporão o prejuízo que sofrerem (DECRETO n.1318 de 30/01/1954 Apud BRASIL, 2007: Tomo II: 27-8)”. Entretanto, aos indígenas, tal situação não era prevista e não se podia questionar, tendo em vista que não eram possuidores de terras, não havia a possibilidade de adquiri-las por outro meio senão do da concessão estatal. Mas, o art. 75 estabelece que “as terras reservadas para colonização de indígenas, e por eles distribuídas, são destinadas ao seu usufruto; e não poderão ser alienadas, enquanto o Governo Imperial, por ato especial, não lhes conceder o pleno gozo delas, por assim o permitir o seu estado de civilização.” DECRETO n.1318 de 30/01/1954 Apud BRASIL, 2007: Tomo II: 35-6). Ou seja, criaram-se duas situações: as terras devolutas deveriam ser alienadas, mas as que fossem destinadas, aos índios, não poderiam ser alienadas.
Em relação terras devolutas situadas nos limites do Império com países estrangeiros, terras que ainda seriam passíveis de distribuição gratuitas nos termos da Lei de Terras de 1850(Art.1º) previam-se o estabelecimento de colônias militares, devendo ocorrer à medição após suas instalações; no art.84 cogita-se a possibilidade de distribuição “gratuitamente aos Colonos, e aos outros povoadores nacionais e estrangeiros; as condições dessa distribuição, e as autoridades, que hão de conferir os títulos”. Entretanto, é o art. 85, que demonstra a real intenção do legislador:
Art. 85. Os Empresários que pretenderem fazer povoar quaisquer terras devolutas compreendidas na zona de dez léguas nos limites do Império com Países estrangeiros, importando para elas, à sua custa, colonos nacionais ou estrangeiros, deverão dirigir suas propostas ao Governo Imperial, por intermédio do Diretor-Geral das Terras Públicas, sob as bases: 1º, da concessão aos ditos Empresários de dez léguas em quadro ou o seu equivalente para cada Colônia de mil e seiscentas almas, sendo as terras de cultura, e quatrocentas sendo campos próprios para criação de animais; 2º, de um subsídio para ajuda da empresa, que será regulado segundo as dificuldades que ela oferecer (DECRETO n.1318 de 30/01/1954 Apud BRASIL, 2007: Tomo II: 37).
Ou seja, de certa forma, o Decreto, voltava a questão que fundamentou a Lei de sesmarias, quando estabelece critérios econômicos para o povoamento, cabendo aos empresários a possibilidade de importar colonos tantos nacionais como estrangeiros. Além disso, estabelece que coubessem os custos do povoamento aos novos proprietários, mas enfatiza a necessidade de subsídio, diante as dificuldades. E, já previa, na Lei 601/1850, que cabia ao governo arcar com gastos de certo número de colonos livres.
Art. 18. O Governo fica autorizado a mandar vir anualmente à custa do Tesouro certo número de colonos livres para serem empregados, pelo tempo que for marcado, em estabelecimentos agrícolas, ou nos trabalhos dirigidos pela Administração pública, ou na formação de colônias nos lugares em que estas mais convierem; tomando antecipadamente as medidas necessárias para que tais colonos achem emprego logo que desembarcarem. Aos colonos assim importados são aplicáveis as disposições do artigo antecedente (LEI n.601 de 18/09/1950 Apud BRASIL, 2007: Tomo I: 75-6).
Se a lei seria omissa em relação aos povoadores nacionais e estrangeiros em relação a possíveis benefícios, é precisa quando fala dos empresários que iriam colonizar. Além disso, parecia ficar de fora da legislação, os nativos que residiam em tais terras. Ou seja, mesmo sendo devolutas, não parecia enquadrá-los no processo de distribuição, tendo em vista que a lógica era o povoamento. Este deveria ser realizado por colonos nacionais e estrangeiros, preferencialmente de origem branca. Se em relação aos índios houve certa preocupação em delimitar áreas, prevendo, inclusive a possibilidade de não alienação, no caso da população negra, sequer situação semelhante foi cogitada.
Considerações finais
As questões apresentadas acima visam suscitar questionamentos sobre a forma de consolidação da estrutura agrária brasileira. Sua forma de organização, baseada na exploração escravagista centrada na agricultura de exportação, demonstrava que a terra enquanto uma mercadoria capitalista seria concentrada sob o poder de poucos latifundiários. A legislação portuguesa para o setor agrário, dimensionou essa prática quer por vezes, mantendo a omissão, como ocorreu por quase todo o Brasil Colônia quer por seu direcionamento a partir da primeira Constituição, enfatizando a propriedade privada como bem inviolável. Destacou-se a lógica liberal de concepção de sociedade em detrimento das relações sociais existentes. Lograram defender a transformação de tudo e de todos em mercadoria e, como tal, não importava se seriam homens ou mulheres, livres ou escravos. O que valia era a relação predominante de exclusão social e concentração dos meios de produção.
Podia-se destruir qualquer princípio liberal que os próprios capitalistas fizeram fortalecer. Redimensionavam-se as relações de poder, visando estabelecer critérios seguros de manutenção do status quo. Nesse sentido, as Leis de sesmarias do período colonial cumpriram o papel de estabelecer critérios numa sociedade sem critérios. A Lei de terras veio para coroar, até os dias atuais, como deveria permanecer as relações no campo. As sucessivas Constituições Federais passaram a reproduzir o ideário liberal da coroa portuguesa e, por tabela, as Estaduais. Permaneceu a lógica intervencionista do Estado em defesa dos latifúndios. Quando da aprovação do novo regulamento de terras devolutas da União, através do decreto republicano de 5 de março de 1913, como em uma cantinela, repetiu-se os principais itens da Lei de 1850, mesmo fossem substituídas as palavras por outras. Durante todo o Brasil republicano, os intocáveis latifúndios não foram questionados. Sob essa lógica a Lei 4504, de 30 de novembro de 1964, mais uma vez, corrobora com as prerrogativas instituídas em 1850: a manutenção do sistema de propriedade. A lógica capitalista no Brasil concentra sua força no processo de manutenção/restauração das condições de exploração existente. A herança brasileira da colônia e império vigora, reacende a cada reordenação da legislação. Mesmo a Constituição de 1988, não conseguiu expurgar as forças controladoras do poder estatal presentes sob o poder do latifúndio agrário-exportador.
O eterno complexo de colônia, de submissão e subserviência ao capital internacional se torna presente sob a lógica dominante de um capitalismo que não soube ou não quis adentrar em conflitos para, inclusive, eliminar aquilo que seria a marca presente em toda a história brasileira: o latifúndio expropriador. Por essa lógica, mantiveram-se negros, índios, mestiços, a população empobrecida, distante do acesso a terra. Ao mesmo tempo, urbanizaram-se as cidades, com milhares de camponeses sem perspectiva de vida. A urbanização forçada esteve presente em toda a história brasileira e, mas do que nunca, preserva a sua característica de exclusão social. Tanto o campo como a cidade, encontra-se permeados pela lógica da exclusão e de submissão. A “Lei para inglês ver” originária do início do século XIX, ainda se faz presente quando a questão é a defesa da reforma agrária, dos assalariados do campo, da política fundiária em geral, do uso de empréstimos aos camponeses.
REFERENCIA BIBLIOGRÁFICA
BAUSBAUM, Leônico. História sincera da República: das origens até 1889. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1957.
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário. Coletânea de legislação e jurisprudência agrária e correlata. Organizadores Joaquim Modesto Pinto Junior, Valdez Farias. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário, Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural /NEAD Especial, 7. v. I,II,III, 2007.
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 33 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2004.
LINHARES, Maria Yedda Leite, SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. História da agricultura brasileira: combates e controvérsias. São Paulo: Brasiliense, 1981.
PIRIS, J. M.; COSTA, I. del Nero da. O capital escravista-mercantil: caracterização teórica e condições históricas de sua superação. Revista Estudos Avançados, v. 14, n. 38, 2000.
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. 17 ed. São Paulo: Brasiliense, 1981.
RIBEIRO, Maria Luíza Santos. História da Educação Brasileira: a organização escolar. 18 ed. ver. ampl.. Campinas: Autores Associados, 2000.
SPOSITO, Fernanda. Indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845). São Paulo: USP, 2006(Dissertação de mestrado).
SODRÉ, Nelson Wernek. Panorama do segundo império. 2ed. Rio de Janeiro: GRAFHIA, 1998.
THOMAS, Georg. Política indigenista dos portugueses no Brasil (1500-1640). São Paulo: Edições Loyola, 1982.
[1] Mestre em Sociologia/UFPB; professor assistente em Sociologia pela Universidade Estadual de Alagoas-UNEAL. Out/2008.
[2] O processo de organização fundiária em terras brasileiras teve por base as determinações das Ordenações manuelinas (1521). Dom João III cria as capitanias hereditárias e com elas a possibilidade de distribuição de terras em forma de sesmarias. Até 1548, o regime fundiário acompanhava as ordenações. Entretanto, a partir de Tomé de Souza, a concessão de terras foi organizada com a condição de que passasse a construir engenhos de açúcar e as terras apenas poderia ser distribuída a quem pudesse cultivar ou realizasse atividades de proteção necessária a defesa. Estava posta a condição para que houvesse ampliação da propriedade que, posteriormente, se constituiria a forma usual de acesso a terra.
Antonio Barbosa Lúcio[1]
RESUMO
Este texto possui por objetivo analisar as influências portuguesas na organização da legislação brasileira de terras e sua abrangência no processo de enraizamento das relações de poder. Preocupa-se, portanto, em demonstrar como as relações capitalistas que se faziam presentes no desenvolvimento das organizações sociais e no processo de consolidação dos interesses das elites econômicas foram, passo a passo, institucionalizadas. Destacaremos as legislações das sesmarias, no período colonial e, a Lei de Terras, no Império. Estas puderam estabelecer regras que consolidaram o modelo agrário brasileiro sob a perspectiva do latifúndio, inclusive proporcionando questões legais para efetivação de práticas aquém dos interesses nacionais, mas condizentes com as metas estabelecidas pelos grupos economicamente dominantes. Sua efetivação contribuiu para a manutenção do quase intocável latifúndio brasileiro.
Palavras-chave: legislação agrária, latifúndio, capital agrário-exportador.
Introdução
A legislação agrária no Brasil passou a ser organizada a partir dos interesses reais de suplantação de entraves econômicos, políticos e sociais que respaldavam a organização da sociedade brasileira. Os entraves estariam muito mais centrados na forma de organização do Estado liberal, com possíveis mudanças de orientação no decorrer do período colonial do que propriamente uma necessidade de regulamentação, sob o ponto de vista liberal. Ou seja, se no período do Brasil Colônia, não havia grandes necessidades de regulamentação voltada para as áreas agrárias, no Império, a organização econômica, social e política apontava alterações significativas, exigindo delimitação explicita do que se pretendia como modelo de sociedade. Nesse sentido, este texto possui por objetivo analisar as influências portuguesas na organização da legislação brasileira de terras e sua abrangência no processo de enraizamento das relações de poder. Sob o ponto de vista daquilo que Pires e Costa (2000) chamaram de capitalismo escravagista-mercantil, a legislação agrária brasileira tenderia a corroborar com as formas de dominação do capital em terras brasileiras, quer com sua consolidação utilizando-se o trabalho escravo, aparentemente destoante do sistema capitalista, quer posteriormente, com a ampliação do capital comercial e indústria. As formas de dominação estavam presentes, também, através da propriedade da terra e da consolidação da estrutura agrária brasileira.
Um conjunto de fatores favoráveis a organização capitalista no Brasil, propiciou a necessidade de manutenção da estrutura agrária sob a lógica da grande propriedade. Caio Prado Jr.(1981) em “Formação do Brasil Contemporâneo” ressalta elementos essenciais da vida material na colônia, tais como a grande lavoura, a monocultura e o trabalho escravo. Destaca ainda, que elementos secundários, como a pecuária, o setor de serviços e a economia voltada para a produção de gêneros alimentícios, estariam subordinados aos elementos essenciais, tendo em vista que suas atividades estariam voltadas, tanto para o mercado interno como externo. No primeiro caso, centrados na produção para a grande lavoura e, no segundo, subordinado aos preços internacionais. Além disso, a demanda de gêneros agrícolas existente na Europa estaria entre os fatores impulsionadores da expansão de produtos tropicais. Furtado (2004) enfatiza a importância da pressão das demais nações européias sobre Portugal e Espanha, voltadas para a necessidade de ocupar as terras para que efetivamente tivesse seus “direitos” garantidos; a experiência de Portugal com a produção de açúcar em outras colônias; a importância de fazer produzir para cobrir despesas centradas na defesa das novas terras; a demanda existente nas nações européias por açúcar e a existência de grandes capitais interessados em ampliar as exportações, dentre outros. Aliado aos fatores externos estava a política de mão-de-obra com a utilização de escravos, exigindo grandes quantidades, especialmente nas culturas voltadas para exportação e a existência dessa mão-de-obra disponível. Entretanto, o que efetivamente contribuiu para que houvesse crescente apropriação das terras, estaria no fato de que a utilização de grandes capitais predominou diante os demais fatores, tendo em vista a necessidade de vultosos recursos para o transporte dos escravos, compra de maquinarias necessárias a produção de açúcar e a existência da possibilidade de grandes propriedades necessárias a produção de produtos tropicais.
A colônia portuguesa na América foi influenciada, também, pela forte dependência que Portugal foi adquirindo da Inglaterra. Sua hegemonia, aos poucos passou a ser apenas aparente, tendo em vista que os ingleses, através de diversos pactos passaram a determinar quais principais medidas, Portugal poderia realizar. Bausbaum (1957), fala da debilidade econômica portuguesa e de sua dependência em relação à Inglaterra, além de se sobressair apenas em relação aos produtos importados. Esta interferência externa passa, também, de certa forma, determinar a consolidação de um aparato legal que incidisse sobre as relações internas. Sob a lógica liberal, tendia a prevalecer os interesses externos sobre os internos, e estes, passaram a organizar-se sob o predomínio do setor agrário-exportador. Este, também, passou a influenciar o que efetivamente, seriam as relações de trabalho assalariado, a persistência das grandes propriedades, a exclusão da grande massa de trabalhadores do acesso a terra. Apenas no século XIX, segundo Furtado (2004) a influencia inglesa diminuiria, mas em contrapartida houve a ampliação crescente da dependência dos Estados Unidos.
1.1 A legislação agrária brasileira: o período colonial
A necessidade de elevação de produtos para exportação, no período colonial brasileiro, levará o governo português[2], a criar a Lei de Sesmarias, e determinar a obrigatoriedade da prática da lavoura e o semeio da terra pelos proprietários, arrendatários, foreiros e outros. O que estava em jogo era a grande quantidade de terras existentes e a pouca lucratividade que ela representava, tendo em vista que a Coroa portuguesa, necessitava, para manter seus custos, dos produtos da exportação. Além disso, o comércio europeu, também precisa de matéria-prima para ampliar seus negócios. Assim, a inexistência de produção considerada suficiente, passou a ser estabelecido a obrigatoriedade de produzir, mesmo antes da conquista de terras brasileiras. Determinava que
todos os que tiverem herdades próprias, emprazadas, aforadas, ou por qualquer outro título que sobre as mesmas lhes dê direito, sejam constrangidos a lavrá-las e semeá-las. Se por algum motivo legítimo as não puderem lavrar todas, lavrem a parte que lhes parecer podem comodamente lavrar, a bem vistas e determinação dos que sobre este objeto tiverem intendência; e as mais façam-nas aproveitar por outrem pelo modo que lhes parecer mais vantajoso de modo que todas venham a ser aproveitadas(LEI de 26/06/1375 Apud BRASIL, 2007:Tomo III: 43).
Foi sob a lógica do produtivismo para comercialização de produtos para a metrópole que a legislação sobre a colonização brasileira pôde ser realizada. havia a determinação explicita para tornar as terras produtivas, exigiam, inclusive, a suspensão do direito de propriedade ou de concessão. Estava em jogo, a lógica necessária para a produção agro-exportadora. Entretanto, havia sérias dificuldades para que tal situação ocorresse devido os altos custos da produção. Não bastava, portanto, a determinação real para que os proprietários agrários passassem a produzir. A produção e sua regulação estavam dependentes da situação externa, de financiamentos, dos preços dos transportes e de mão-de-obra, de técnicas necessárias e adequadas. Estes fatores influenciaram negativamente ao processo de ampliação de culturas, tendo em vista a oscilação do mercado externo.
No processo de consolidação da produção agrária-exportadora, no Brasil, a coroa portuguesa, salvo as determinações voltadas para a concessão das terras, não se preocupava em regulamentá-las quanto à propriedade ou a quantidade que poderia ser utilizadas pelos produtores, desde que estes, fizessem cultivar as propriedades. Esta era a grande inquietação que persistia. Por parte dos proprietários agrários em todos os seus níveis, não estava, também em questão a propriedade da terra, tendo em vista que a unidade produtiva, não era a terra, mas o escravo quer o negro quer o indígena. Possuir escravos em quantidade elevada significava maior poder de cultivo das propriedades. Assim, os documentos que se seguem, durante o período colonial brasileiro, passam a enfatizar o aumento da produção e a necessidade de cultivo. Estava em jogo, também o comércio de escravos e os altos custos dos transportes pois constituíam custos elevados podendo, inclusive, inviabilizar a produção.
Daí, longo período sem devida regulamentação da propriedade agrária. No século XVII, na Carta Régia de 27 de Dezembro de 1695 enfatiza a necessidade, dos representantes de Portugal em verificar o cumprimento do dispositivo legal que determinava o cultivo das terras. É importante salientar que a Revolução Industrial inglesa despontara no cenário mundial; o processo de colonização da América do norte e a colonização espanhola também contribuíam com concorrência, no Brasil, de produtos tropicais. A Holanda, França e Inglaterra como potências econômicas, passavam a exigir parte do que consideravam detentoras de direitos (FURTADO, 2004). Coube ao governo português tomar medidas para apaziguar tais situações. Preocupava-se, portanto, com o processo de povoamento e a ampliação do cultivo, tendo em vista que apenas aparatos de guerras eram insuficientes. Tais medidas eram explicitadas, através da legislação voltada para sanar os problemas. Assim, a restrição de quantidades de terras, tinha por meta, estabelecer critérios que favorecesse maior equidade na distribuição, nos seguintes termos:
Dom João de Alencastro, amigo. Eu El-Rei vos envio muito saudar. Por ser informado que nas datas das terras de sesmarias desse Estado se tem usado de maneira que a maior parte dessas datas estão nulas por vários fundamentos assim pela largueza com que se concedem, como pelo uso que dão às terras os mesmos sesmeiros sem que na repartição tenha havido aquela igualdade que convém a meu serviço, também comum aos moradores desse Estado de que procede o não se cultivarem as terras pela maior parte e acharem-se muitos moradores sem data alguma não se observando o que sobre elas tenho ordenado para que se não dê a cada morador mais que quatro léguas de terras (CARTA RÉGIA, EM 27/12/1695 Apud Brasil,2007: Tomo III: 59).
A determinação de Portugal em enfatizar a necessidade de produção, estava também centrada no povoamento. Preocupava-se, com as grandes propriedades, enfatizando a necessidade de limitação para aqueles que não pudessem cultivar. Ao limitar em 4(quatro) léguas (2400 ha), previa-se que poderia haver maior equidade entre a distribuição e, claro, o necessário cultivo. Mais uma vez, coloca-se em questão que quem não cultivar, deve perdê-las.
Fui servido ordenar aos moradores digo, fui servido ordenar aos Ouvidores criados de novo que cada tini nas terras de seus distritos examinem se as sesmarias que se tem dado de maior cumprimento de quatro léguas e uma de largura, se estão cultivadas pelos donatários ou por seus colonos e foreiros em parte ou em todo para que as cultivadas se conservem e as que o não tiverem se julguem, por vagas para se repartirem por outros moradores segundo as suas possibilidades, de que vos aviso para o terdes assim entendido (CARTA RÉGIA, EM 27/12/1695Apud Brasil,2007:Tomo III: 59).
Mas, apenas dois anos depois, em carta regia de 7 de dezembro de 1697, determina o governo de Portugal, que as sesmarias concedidas, sejam limitadas a 3(três) léguas, enfatizando, novamente, a necessidade da produção e que em quantidade elevadas, não haveria condições de produzir que “é o que se entende pode uma pessoa cultivar no termo da lei porque no mais é impedir que outros povoem e que os que pedem e alcançam não cultivam (CARTA RÉGIA, em 7/12/1697 Apud BRASIL, 2007: Tomo III: 60)”.
Explicitava, portanto a preocupação de Portugal com o processo de povoamento, que não estaria sendo realizado a contento, tendo em vista a concentração de terras. Além disso, mesmo forçando a saída de portugueses para o Brasil, a condição não era semelhante à Inglaterra, no processo de povoamento norte americano. No Brasil, a cultura do açúcar exigia grandes contingentes populacionais em amplas quantidades de terras, diferentemente de culturas de pequeno porte, como as realizadas nas colônias inglesas norte americanas. França e Inglaterra viam na colonização européia da Antilhas, o caminho certo para abarcar os domínios espanhóis, já no início do século XVII(FURTADO, 2004). A partir de meados do século XVIII, ocorrendo o aumento dos preços dos escravos, ocasionado pela expansão do ouro, passou a influenciar a economia açucareira, tendo em vista a elevação do preço da mão-de-obra. A atividade canavieira, não se tecnificando, para se expandir, necessitava de maiores quantidades de terras e de escravos. Essa condição, não estando favorável, dificultou a expansão canavieira e, claro, a necessidade por parte do governo português de ampliar a produção.
Sendo assim, foram tomadas medidas que objetivavam tais finalidades. Através do alvará de 3 de março de 1770, já havia a preocupação em delimitar procedimentos para a concessão de sesmarias, determinando especificamente quem poderia concedê-las em nome de Portugal. Entretanto, parecia que a situação não seria resolvida. A concessão de terras existia, mas as sesmarias não eram cultivadas. Esta situação levou o governo português, a estabelecer normas mais rigorosas, sendo o que me parece, o alvará de 1795, o mais consistente voltado para organização de terras no período colonial. Esta legislação, de forma semelhante às citadas acima, passava a exigir mudanças na forma como estava sendo conduzido o processo de distribuição de terras. Esclarecia a ausência de regimento até então que regulamentasse, alertando para os constantes abusos existentes. Estava claro, portanto, que o governo português, até então, não conseguia, de fato, estabelecer normas que fossem seguidas por seus súditos. Se a mão-de-obra encarece, não seria a legislação que iria coibir os abusos existentes. A terra, aos poucos, passa a ser o lócus privilegiado para manutenção do status quo, mesmo que ainda prevaleça o escravo como a principal ferramenta de produção. Houve, portanto a partir da Lei de 1795, a preocupação de regulamentação daquela que viria, futuramente, determinar sob que condições os grupos econômicos iriam se estabelecer: o domínio das terras. Esta Lei destacava que a distribuição de terras em sesmarias ocorria a partir de documentos dos antigos donatários. A preocupação da coroa portuguesa ia além, enfatizando a necessidade de legislar e de maior e melhor distribuição de terras, inclusive, condenando o que foi chamado de distribuição desigual de terras, nos seguintes termos:
(...) conseqüências não menos danosas, e ofensivas do Público Benefício, e da igualdade, com que devem, e deviam ser em todo o tempo distribuídas as mesmas terras pelos seus Moradores, chegando a estado tal esta irregular distribuição, que muitos destes Moradores não lhes têm sido possível conseguirem as sobreditas Sesmarias, por Mercê Minha, ou dos Governadores, e Capitães Generais do dito Estado, à força de objeções oposta por que sem algum Direito não deveria impugná-las; outros pelo contrario as têm apreendido, e apreendem, e delas se apossam sem Mercê, e sem licenças legítimas, que devem ter para validarem os Títulos das suas Possessões, passando a tal excesso tão repreensíveis abusos a este respeito, que até a maior parte das mesmas Sesmarias, ainda as que estão autorizadas com as competentes Licenças, Cartas, e Confirmações, jamais chegam a ser obrigados por muitas, e repetidas Ordens, que se têm expedido a todos aqueles Domínios a este sim, são úteis, quanto prejudicial a falta de observância, que elas têm tido no mesmo Estado do Brasil, de cuja falta, e da sua tolerância tem notoriamente resultado no Foro tantos, e tão odiosos Litígios, entre uma grande parte dos ditos Meus Vassalos, quanto o mostra a experiência (...) (Alvará de 5/10/1795 Apud BRASIL, 2007: Tomo III: 48).
Não significava que a coroa portuguesa, pretendia ampliar a participação dos súditos ao acesso as terras, mas teria sido forçada diante as constantes investidas de outras potencias econômicas. Portugal precisava ampliar sua condição de monopolizador da colônia, tendo em vista as ocupações já existentes, em períodos anteriores, pela Holanda e a França e tentativas da Inglaterra. A determinação legal, além de causar a devida demarcação das terras, preconizava a pena de comisso, ou seja, a perda de domínio e, diferentemente de questões semelhantes na atualidade, o simples desrespeito a demarcação das terras, já apontava essa necessidade. Além disso, chamava especial atenção para que a concessão de novas sesmarias, “nunca mais poderá confirmar Sesmaria alguma, sem que se lhe apresente, junto com a Carta dela, Certidão legal, e autêntica, de se haver feito, e passado em Julgado a demarcação, que respeita a cada uma das ditas Sesmarias (ALVARÁ de 5/10/1795 Apud BRASIL, 2007: Tomo III: 48). Entretanto, não estabelecia mudanças quanto às sesmarias existentes nem mesmo em relação à quantidade de terras que cada sesmeeiro tivesse adquirido. Coibiam-se possíveis abusos futuros, ao mesmo tempo em que permanecia a condição das terras até então existentes, admitindo-se, a própria falta de legislação pertinente. Mas, enfatizava o fato da demarcação e os que assim não o fizessem, que as terras retornassem ao poder real. No item VI, do referido alvará, determina que as terras próximas a vilas fossem distribuídas, notadamente no litoral, sesmarias de até meia légua, destacando distribuição eqüitativa entre “todos os seus moradores”, inclusive cogitando a possibilidade de redistribuição entre os habitantes das já existentes (item VII). O item XI estabelece a quantidade máxima que poderia possuir um sesmeeiro, estipulando em 01(uma) sesmaria, para aqueles que possuindo quantidade de trabalhadores considerados insuficientes. Alertava-se, também, que a condição era exigida, inclusive em caso de herança ou doação. Ou seja, se não tivesse condições para a produção, não poderia ampliar a sua propriedade. Determinou ainda, mais de uma concessão, desde que houvesse condições de cultivo. Dar-se-ia um prazo de dois anos para a devida comprovação de que havia possibilidades de cultivos, inclusive com a quantidade de escravos adequadas ao trabalho. O item XII, enfatiza que quem não pudesse cultivar, seria no prazo de 2(dois) anos, obrigado a vendê-la ou repassar para quem fosse capaz de cultivar, ou ainda, deveria devolver a coroa portuguesa. O item XIII, fala da existência de sesmarias sem a devida qualificação para tal, ou seja, terras sem a existência de documentação legal. Passa, também, a estabelecer a sua devida regularização, desde que comprove o critério de produção com escravos suficientes. O item XVI determina que não sejam concedidas sesmarias em terras que não estejam vagas. Atentava-se para o fato de ocorrer duplicação de sesmaria, com pessoas diferentes. Ou, como ocorre atualmente, com a grilagem.
Através da legislação acima, estavam postas as condições para o efetivo controle de terras. Incluíam-se, assim, aqueles sesmeeiros que não possuísse tais condições, reordenando, de certa forma, as relações agrícolas existentes. Regulava-se, tanto a concessão como as formas que ela deveria ocorrer e, ao mesmo tempo, privilegiava-se aqueles possuidores de escravos e com condições financeiras suficientes para alavancar a produção, com acesso a quantidades maiores de terras, sua ampliação através de heranças, tendo apenas que confirmar a possibilidade de ampliação da produção. Note-se que até então, o produto de maior condição exportadora era o açúcar e este necessitava de grandes quantidades de terras e de escravos, favorecendo a existência de grandes propriedades e a quase inexistência de pequenas áreas voltadas a produção agrícola de subsistência. Esta teve que adentrar para áreas não cultivadas com cana-de-açúcar, a exemplo do agreste e sertão nordestinos e, no centro sul, para áreas não cultivadas com cana-de-açúcar, mas que passariam a servir como suporte a produção do ouro.
O século XVIII seria, portanto, marcado pelo reordenamento das relações agrícolas no Brasil, com a crescente estagnação da economia açucareira nordestina, a emigração do excedente da população livre para o interior do país e, a concentração do trabalho escravo na busca de ouro. Ao mesmo tempo, a produção de subsistência, no nordeste, estava voltada para o setor canavieiro, tanto de alimentos como as atividades criatórias. No centro-sul, a partir de São Paulo, amplia-se a capacidade produtiva visando subsidiar, em alimentos, a procura por ouro. Se a produção de alimentos não exigia grandes quantidades de terras, a economia criatória, especialmente de gado bovino, não poderia dispensar tal condição, ao mesmo tempo em que necessitava de pouca mão-de-obra. Ou seja, não carecia em quantidades elevadas, tanto escravos como homens livres. Mas, pôde servir, inclusive, para favorecer a interiorização do Brasil. Entretanto, a produção de alimentos como a criatória, era impulsionadora das economias exportadoras quer o açúcar, o ouro, o algodão ou o café.
Ao final do século XVII e durante grande parte do século XVIII, a economia brasileira centrada especialmente na produção de açúcar passou, diante as condições externas, a definhar. Sua ampliação estava exclusivamente baseada na produção extensiva, sem mudanças significativas que proporcionassem o aumento da produção e da produtividade. Portugal, por outro lado, via cada vez mais sua dependência em relação à Inglaterra se enraizar. Em 1703, através do tratado de Methwen, se vê sufocado pela economia inglesa, ao mesmo tempo em que necessitava do acordo para viabilizar a sua débil economia (RIBEIRO, 2000). Outras medidas são tomadas, voltadas para mudanças na organização do Brasil, tais como: em 1753, o Marquês de Pombal extinguiu a escravidão dos índios no Maranhão; 1755, a libertação dos indígenas em todo o Brasil e, em 1760, a expulsão dos Jesuítas e o fim das capitanias hereditárias. Note-se, até então não havia menção referente às terras ocupadas pelas populações indígenas. Segundo Thomas (1982) a legislação já em 1595, tornava os jesuítas responsáveis pelos índios e, a de 1596, os considerava instrumento de paz e prosperidade. Entretanto, o conflito entre colonos e jesuítas, em 1640, ocasionou a expulsão destes últimos de São Paulo e Rio de Janeiro. Pouco mais de um século depois, o Marquês de Pombal os expulsa do Maranhão. Se a legislação era omissa quanto às terras indígenas, não ocorria quando a questão passava a ser o conflito entre a economia portuguesa no Brasil e as formas como os jesuítas conduziam essa economia.
A economia colonial, pelos fatores acima apontados, necessitava redimensionar suas práticas para além das então existentes. Mesmo que problemas existentes na produção de açúcar e, por sua vez, na estagnação da econômica interiorana voltada para a economia de subsistência centrada na produção de alimentos e a criação de animais, especialmente, o gado bovino, estivesse em franca decadência.
O século XIX seria aquele decisivo para a economia brasileira. A decadência do açúcar como principal atividade econômica do século XIX, a importância da cultura do algodão e do tabaco e a também decadente economia aurífera, apontava para um Brasil que tinha na agricultura sua sobrevivência.
1.2. Os caminhos da legislação agrária no Brasil Império
Um panorama na primeira metade do século XIX, no Brasil, é apresentado por Wernek Sodré da seguinte forma:
Já havíamos constituído uma formação sociogênica apta a governar-se. A fortuna particular argamassa interesses sólidos e vinculados à terra. O comércio abrira perspectivas alvissareiras para os dias em que se fizesse de nação a nação, sem a tutela e a interferência lusitana. A sociedade construíra a sua hierarquia. No tope, havia os senhores dos latifúndios. Os donos da riqueza agrária. A gente que ia constituir a nobreza e os titulares do segundo império. No meio, uma massa ainda confusa de rodeadores dessa riqueza e de habitantes das cidades, no início já a base urbana da nossa civilização, até aí puramente agrária. Essa massa se compunha de gente de todas as origens. Era a resultante do caldeamento racial. Era a resultante da dispersão da riqueza, da sua circulação que, embora e lenta, forçava já o aparecimento desse embrião de classe média, cerne e índice das sociedades. No fundo, estava a escravaria e a indiada (SOBRÉ, 2004:26).
O autor acima fala da constituição da sociedade brasileira. Sua forma de organização estaria sendo delineada, não apenas prioritariamente entre as elites econômicas rurais e a grande maioria de escravos. As chamadas camadas médias surgem nos centros urbanos e o impulso escravocrata ainda se fazia presente, mesmo a partir das ideais liberais que impulsionava para o contrário.
No campo técnico, continuava-se mantendo práticas do inicio da colonização, tendo a queimada como principal forma de utilização da terra, sem a utilização de outros mecanismos já conhecidos, a exemplo da irrigação; inércia no desenvolvimento industrial, mesmo aquelas ligadas a agricultura; manutenção da tração animal como força motriz dos engenhos em detrimento dos engenhos d’água; não utilização de técnicas modernas para os tratos culturais e beneficiamento de algodão etc. (PRADO JUNIOR,1976). Estes fatores explicitavam a debilidade econômica da agricultura em relação a outras regiões européias ou mesmo norte-americana.
No campo internacional, a dependência em relação à Inglaterra se fazia presente. Com a vinda da família real para o Brasil e a abertura dos portos, em 1808, os ingleses souberam usufruir de seu poder sobre Portugal para acentuar a dependência econômica da principal colônia portuguesa. O Decreto de 22/06/1808 passou a estabelecer que a concessão de sesmaria devesse ocorrer através de ordem expressa do Rei. O decreto de 25/11/1808 ampliava a possível participação de estrangeiros residentes no Brasil, o acesso a terras. Estes dois decretos, de certa forma, visavam o controle real sobre as terras. Estas, sob a lógica da propriedade privada, mas com o conseqüente distanciamento do governo português em suas concessões, buscou-se, portanto, garantias de quem, de fato, poderia possuí-las. Antecipava-se, portanto, a lógica de apropriação da Lei de 1850. O decreto de 25/11/1808, estabelecia que
sendo conveniente ao meu real serviço e ao bem público, aumentar a lavoura e a população, que se acha muito diminuta neste Estado; e por outros motivos que me foram presentes: hei por bem que aos estrangeiros residentes no Brasil se possam conceder datas de terras por sesmarias pela mesma forma, com que segundo as minhas reais ordens se concedem aos meus vassalos, sem embargo de quaisquer leis ou disposições em contrário (Decreto de 25/11/1808 Apud BRASIL, 2007: Tomo II: 23).
Sendo constantemente pressionado pela Inglaterra e, já prevendo o possível fim da escravidão brasileira, mas que o governo imperial posterga pelo maior tempo possível, a lógica desenvolvimentista brasileira ia, aos poucos, sendo deslocada do escravo como principal atividade econômica, para a terra. Os capitalistas latifundiários, gerados, por vezes, aquém da legislação que limitava em 3 léguas se configuravam o grupo econômico que dava sustentação ao governo. O alvará de 1795, observado acima, ao ampliar a possibilidade de ampliação para além de 3 léguas, possibilitou, também, a regulamentação dos latifúndios e a condição de ampliação de domínios. Ao mesmo tempo, também impulsionou “diferenciação histórica dos latifúndios em dois tipos: os que tiveram sua origem em antigas sesmarias e aqueles latifúndios em escala muito maior [...] que se originaram neste período (LINHARES E SILVA, 1981: 32)”.
Se até então, a legislação, de certa forma, era omissa diante a propriedade agrária, foi com a resolução de 17/07/1822, confirmada pela provisão de 23/10/1823, estava sendo delineada a forma de propriedade da terra que deveria perdurar pelos séculos subseqüentes. Esta resolução suspende a concessão de novas sesmarias, mas, prevê a continuidade da posse da terra aqueles que já a tivesse fazendo uso. Ou seja, manteve-se o domínio, sem maiores questionamentos, inclusive em relação à dimensão da propriedade ou a delimitação das áreas que os latifundiários tinham diretos. Note-se que até então, conceder sesmarias era uma prerrogativa da Coroa Portuguesa e de seus representantes legais. A própria Coroa apontava, com vimos acima, a dificuldade de delimitar as áreas, o cultivo da propriedade, e de possíveis posses “indevidas”. Além disso, a própria dimensão territorial brasileira, apontava para dificuldades de comunicação entre as províncias que pudessem interferir decisivamente no cumprimento do que era estabelecido na Lei de regulamentação das sesmarias. Optou-se, portanto, para a manutenção do que vinha ocorrendo tradicionalmente.
A Constituição de 1824, criada sob a força absolutista, centrada na hegemonia de latifundiários e sob a pressão externa, passou a estabelecer:
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte: XXII – É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem público legalmente verificado exigir o uso e emprego da Propriedade do Cidadão, será ele previamente indenizado do valor dela. A Lei marcará os casos em que terá que lograr esta única exceção, e dará as regras para se determinar a indenização (ART. 179/XXII. CF/de 25/03/1824 Apud BRASIL, 2007: Tomo I: 27).
Enterrou-se, definitivamente, a concessão de terras sob o regime de sesmaria. E, durante 28 anos, não houve preocupação de regulamentar como ocorreria a apropriação das terras, fato que ocorreu apenas em 1850. A propriedade privada passou a vigorar em todas as constituições brasileiras, tendo em vista a sua orientação liberal. Sua influência, a partir das constituições liberais da Europa, não seria mera coincidência, mas a prática corrente de manutenção do status quo de seus representantes imediatos: o capitalista agrário-exportador. Ao mesmo tempo, estabelecia quem poderia possuir os direitos que a recém Constituição estabelecera: os cidadãos brasileiros. Excluía-se, portanto, a maioria escravizada, os índios e alguns tantos outros que não possuíam poder aquisitivo. O escravo, como uma mercadoria, também estava no bojo de proteção da propriedade. Portanto, não era cidadão, mas mercadoria inviolável, pertencente aos proprietários agrários. Já no projeto de Constituição de 1823, segundo Sposito (2006), questionava-se se o índio seria cidadão ou mesmo brasileiro. Esta questão. Segundo o autor, demonstrava que havia um fosso entre a sociedade real e a nacional pretendida:
Havia um fosso entre a sociedade real, existente em território que se pretendia nacional, e aquela sociedade que passaria a compor, a partir de então, a nação brasileira. Estas sociedades, a ‘ real’ e a ‘nacional’ não coincidem e essa característica não deve ser entendida como contraditória com o ideal de igualdade pretendido pelo Estado nacional, apesar de evidentemente conflituosa (SPOSITO, 2006:18-19).
Tanto não eram contraditórias que as divergências geradas a partir do projeto de Constituição de 1823 e a Constituição de 1824, não apenas em relação aos índios, não foram tais questões que ocasionaram maiores problemas para a aprovação do projeto de 1823, mas sim, as relações de poder. Na Constituição aprovada em 1824, ficava claro, que apenas aqueles que com recursos financeiros, possuiriam prerrogativas de cidadão brasileiro. A igualdade pretendida, estava entre os possuidores de bens e, excluíam-se os não possuidores. Se entre 1822 a 1850, não havia legislação específica que estivesse centrada em quem seriam os possuidores de terras, já havia indícios a quem, de fato, elas seriam distribuídas. Ao excluir indígenas, escravos, grande parte da população branca sem recursos dos direitos de participação da vida pública, estabelecia-se, com antecipação, a forma de organização social que deveria vigorar. Sposito(2006), destaca que o liberalismo do século XIX, mesmo quebrando os fundamentos da sociedade estamental, não o fazendo sobre o regime de igualdade irrestrita a todos os membros da sociedade, mas sob a lógica de igualdade jurídica.
A legislação de terras existentes até então em consonância com as demais que formaram a composição jurídica brasileira, era reflexo e refletia as relações de dominação até então existentes: a subordinação das classes inferiores sob os ditames dos interesses gerais, centrados na lógica de sujeição ao capital internacional. A manutenção do sistema escravagista, na contramão das mudanças ocorridas na Europa, nos Estados Unidos e, nos demais países da América Latina, impulsionadas pelo capitalismo liberal, apontava quanto à forma de condução das políticas internas. Esta situação tenderia ser ampliada devido ao fato de que o Brasil, aos poucos, transferia sua principal relação econômica com a Inglaterra para os Estados Unidos, ou seja, “a medida que o café aumenta sua importância dentro da economia brasileira, ampliam-se as relações econômicas com os EUA (FURTADO, 2004:44)”. Coube ao Brasil, portanto, a manutenção do escravismo como forma de postergação dos interesses locais. Pretendia-se a possível libertação dos escravos, sem a necessária perda de mão-de-obra.Daí por que o Brasil, sucessivamente, passa a não cumprir os acordos realizados com a Inglaterra desde 1810 que visavam o fim do trabalho escravo, apenas efetivando-o legalmente, em 1850. Coincidência ou não justamente com a promulgação da Lei de Terras. Manteve-se, portanto, as relações de exclusão social, não apenas dos escravos, mas também de grande parte da população livre. Sob essa lógica de exclusão sumária, estava em jogo, em um país com a quase exclusividade agrária, o controle das terras. Esta situação vai ser sanada, com a Lei Imperial nº 601, de 18 de setembro de 1850.
A Lei vai representar, no Império, a consolidação do sistema de propriedade e, mais precisamente, da propriedade agrária sob o domínio de um grupo seleto que historicamente vinha se construindo, através do sistema de sesmaria e da transmissão das terras, através de heranças. Fortalece, também, a forma como foi conduzida a apropriação de terras, a partir de 1822, quando o sistema de sesmaria foi abolido e, em seu lugar, não foi estabelecida outra legislação que constituísse normas para aquisição de propriedades nem a sua demarcação.
Já no artigo 1º da Lei de Terras, fica estabelecida a aquisição de terras devolutas apenas sob a compra. Ao excluir a possibilidade de que a aquisição de terras possa ser realizada por doação, como até então vinha ocorrendo, objetivava-se que toda a população que não possuísse recursos fosse excluída do acesso. Permite-se, apenas que terras de fronteiras com o Império pudessem ser distribuídas gratuitamente até o limite de 10 léguas. Ao mesmo tempo, no art.3º, a Lei passou a determinar quais as terras que poderiam ser passíveis de compras:
Art. 3º São terras devolutas: § 1º As que não se acharem aplicadas a algum uso público nacional, provincial, ou municipal. § 2º As que não se acharem no domínio particular por qualquer título legítimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em comisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura. § 3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que, apesar de incursas em comisso, forem revalidadas por esta Lei. § 4º As que não se acharem ocupadas por posses, que, apesar de não se fundarem em título legal, forem legitimadas por esta Lei (LEI n.601 de 18/09/1950 Apud BRASIL, 2007: Tomo I: 75-6).
Ou seja, a propriedade agrária passou a ser legitimada como propriedade inviolável. A inviolabilidade, incluía inclusive, todas as propriedades, mesmo aquelas que não obedeciam a lei de sesmaria, que determinava limites de áreas. Ficou estabelecida a legalidade. Por decreto, todos os proprietários, passaram a usufruir das terras já “conquistadas” e, aqueles que pudessem comprar mais, poderiam fazê-lo, sem limites estabelecidos em Lei. Excluiu-se, não apenas a grande maioria da população escrava ou mestiça, mas, inclusive, os nativos. A estes, foi reservado no art.12 que “O Governo reservará das terras devolutas as que julgar necessárias: 1º, para a colonização dos indígenas”. Esta situação apenas vai ser parcialmente remediada, a partir da regulamentação da Lei com o Decreto 1318 de 30/01/1854 que veremos adiante. Por outro lado, o art.18 estabelecia a autorização para a vinda de colonos livres para serem empregados. Estabelecia-se assim, condições favoráveis para substituição do escravo. Entretanto, não foi prevista qualquer cláusula voltada para esse contingente populacional. A lei determina, também, a criação da Repartição Geral de Terras Públicas, que seria responsável pela demarcação das terras devolutas, formando assim, o aparelho burocrático que daria sustentação a efetivação da legislação.
O certo foi que apesar da determinação legal, a demarcação das terras estabelecidas na legislação, a partir de 1854, não ocorreu como se previa. O Decreto 1318 de 25/01/1854 que regulamenta nos termos da Lei de 1850, no art.22 reforça a possibilidade de validação das terras adquiridas por doação e “considera como não devolutas todas as terras, que se acharem no domínio particular por qualquer título legítimo”. Na regulamentação, buscou-se, repetir grande parte da Lei anterior e, estabelecer critérios para a regulamentação.
Art. 24. Estão sujeitas à legitimação: § 1º As posses que se acharem em poder do primeiro ocupante, não tendo outro título senão a sua ocupação.§ 2º As que, posto se achem em poder de segundo ocupante, não tiverem sido por este adquiridas por título legítimo. § 3º As que, achando-se em poder do primeiro ocupante até a data da publicação do presente Regulamento, tiverem sido alienadas contra a proibição do art. 11 da Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850(DECRETO 1318 de 30/01/1954 Apud BRASIL, 2007: Tomo II: 28-9).
.
Ou seja, tudo passa a ser permitido, desde que privilegiasse os proprietários de terras. Entretanto, de certa forma, inova em relação às terras destinadas aos índios. Nos artigos 72 e 73, passa a estabelecer terras destinadas para a colonização dos “selvagens”. Seriam destinadas das terras devolutas parte para a colonização. Subtende-se que estas não poderiam ser vendidas, pois seriam destinadas a aldeamentos indígenas. “Serão reservadas terras devolutas para colonização, e aldeamento de indígenas nos distritos, onde existirem hordas selvagens (DECRETO n.1318 de 30/01/1954 Apud BRASIL, 2007: Tomo II: 35)”.
Entretanto, tanto a Lei de Terras de 1850, como a sua regulamentação, em 1854, não fazia referência, pela lógica de colonização, àqueles que não eram considerados selvagens. Na verdade, deixou por conta dos fazendeiros ou seus indicados, a incumbência de estabelecer quais seriam essas terras e a dimensão que iriam abranger, apontado os artifícios legais que deveriam ser instituídos, nos seguintes termos:
Art. 73. Os Inspetores e Agrimensores, tendo notícia da existência de tais hordas nas terras devolutas, que tiverem de medir, procurarão instruir-se de seu gênio e índole, do número provável de almas, que elas contêm, e da facilidade, ou dificuldade, que houver para o seu aldeamento; e de tudo informarão o Diretor-Geral das Terras Públicas, por intermédio dos Delegados, indicando o lugar mais azado para o estabelecimento do aldeamento, e os meios de o obter; bem como a extensão de terra para isso necessária (DECRETO n.1318 de 30/01/1954 Apud BRASIL, 2007: Tomo II: 35).
O governo brasileiro, por outro lado, garantiu que as terras consideradas devolutas, não podendo ser vendidas passariam a pertencer ao Estado. Incluíam-se, também as terras indígenas. Estas, não pertenciam aos índios, mas ao Estado e, este, por sua vez, determinava quem poderia ter acesso. Entretanto, a inovação contida no Decreto acima, estaria em estabelecer a possibilidade de que estas terras não fossem vendidas e que pudessem ser utilizadas pelos índios. O problema seriam aqueles que não se sujeitasse ao processo de colonização. Observe que colonizar significava integração ao conjunto da sociedade brasileira, aos interesses dos grupos controladores do Estado e a lógica de privatização do território brasileiro.
Entretanto, o art. 2 da Lei de Terras de 1850, estabelecia punição para “os que se apossarem de terras devolutas ou de alheias”. A possível punição parecia mais vinculada a terras, vinculadas as sesmarias anteriores a Lei e as que estivessem sob o domínio do Estado. Entretanto, em relação às devolutas, estabelecia-se, no art. 18 do decreto de 1854, a medição, por funcionário especialmente designado e, previa-se, no art. 19 a possibilidade de “se os proprietários, ou posseiros vizinhos se sentirem prejudicados, apresentarão ao Agrimensor petição em que exporão o prejuízo que sofrerem (DECRETO n.1318 de 30/01/1954 Apud BRASIL, 2007: Tomo II: 27-8)”. Entretanto, aos indígenas, tal situação não era prevista e não se podia questionar, tendo em vista que não eram possuidores de terras, não havia a possibilidade de adquiri-las por outro meio senão do da concessão estatal. Mas, o art. 75 estabelece que “as terras reservadas para colonização de indígenas, e por eles distribuídas, são destinadas ao seu usufruto; e não poderão ser alienadas, enquanto o Governo Imperial, por ato especial, não lhes conceder o pleno gozo delas, por assim o permitir o seu estado de civilização.” DECRETO n.1318 de 30/01/1954 Apud BRASIL, 2007: Tomo II: 35-6). Ou seja, criaram-se duas situações: as terras devolutas deveriam ser alienadas, mas as que fossem destinadas, aos índios, não poderiam ser alienadas.
Em relação terras devolutas situadas nos limites do Império com países estrangeiros, terras que ainda seriam passíveis de distribuição gratuitas nos termos da Lei de Terras de 1850(Art.1º) previam-se o estabelecimento de colônias militares, devendo ocorrer à medição após suas instalações; no art.84 cogita-se a possibilidade de distribuição “gratuitamente aos Colonos, e aos outros povoadores nacionais e estrangeiros; as condições dessa distribuição, e as autoridades, que hão de conferir os títulos”. Entretanto, é o art. 85, que demonstra a real intenção do legislador:
Art. 85. Os Empresários que pretenderem fazer povoar quaisquer terras devolutas compreendidas na zona de dez léguas nos limites do Império com Países estrangeiros, importando para elas, à sua custa, colonos nacionais ou estrangeiros, deverão dirigir suas propostas ao Governo Imperial, por intermédio do Diretor-Geral das Terras Públicas, sob as bases: 1º, da concessão aos ditos Empresários de dez léguas em quadro ou o seu equivalente para cada Colônia de mil e seiscentas almas, sendo as terras de cultura, e quatrocentas sendo campos próprios para criação de animais; 2º, de um subsídio para ajuda da empresa, que será regulado segundo as dificuldades que ela oferecer (DECRETO n.1318 de 30/01/1954 Apud BRASIL, 2007: Tomo II: 37).
Ou seja, de certa forma, o Decreto, voltava a questão que fundamentou a Lei de sesmarias, quando estabelece critérios econômicos para o povoamento, cabendo aos empresários a possibilidade de importar colonos tantos nacionais como estrangeiros. Além disso, estabelece que coubessem os custos do povoamento aos novos proprietários, mas enfatiza a necessidade de subsídio, diante as dificuldades. E, já previa, na Lei 601/1850, que cabia ao governo arcar com gastos de certo número de colonos livres.
Art. 18. O Governo fica autorizado a mandar vir anualmente à custa do Tesouro certo número de colonos livres para serem empregados, pelo tempo que for marcado, em estabelecimentos agrícolas, ou nos trabalhos dirigidos pela Administração pública, ou na formação de colônias nos lugares em que estas mais convierem; tomando antecipadamente as medidas necessárias para que tais colonos achem emprego logo que desembarcarem. Aos colonos assim importados são aplicáveis as disposições do artigo antecedente (LEI n.601 de 18/09/1950 Apud BRASIL, 2007: Tomo I: 75-6).
Se a lei seria omissa em relação aos povoadores nacionais e estrangeiros em relação a possíveis benefícios, é precisa quando fala dos empresários que iriam colonizar. Além disso, parecia ficar de fora da legislação, os nativos que residiam em tais terras. Ou seja, mesmo sendo devolutas, não parecia enquadrá-los no processo de distribuição, tendo em vista que a lógica era o povoamento. Este deveria ser realizado por colonos nacionais e estrangeiros, preferencialmente de origem branca. Se em relação aos índios houve certa preocupação em delimitar áreas, prevendo, inclusive a possibilidade de não alienação, no caso da população negra, sequer situação semelhante foi cogitada.
Considerações finais
As questões apresentadas acima visam suscitar questionamentos sobre a forma de consolidação da estrutura agrária brasileira. Sua forma de organização, baseada na exploração escravagista centrada na agricultura de exportação, demonstrava que a terra enquanto uma mercadoria capitalista seria concentrada sob o poder de poucos latifundiários. A legislação portuguesa para o setor agrário, dimensionou essa prática quer por vezes, mantendo a omissão, como ocorreu por quase todo o Brasil Colônia quer por seu direcionamento a partir da primeira Constituição, enfatizando a propriedade privada como bem inviolável. Destacou-se a lógica liberal de concepção de sociedade em detrimento das relações sociais existentes. Lograram defender a transformação de tudo e de todos em mercadoria e, como tal, não importava se seriam homens ou mulheres, livres ou escravos. O que valia era a relação predominante de exclusão social e concentração dos meios de produção.
Podia-se destruir qualquer princípio liberal que os próprios capitalistas fizeram fortalecer. Redimensionavam-se as relações de poder, visando estabelecer critérios seguros de manutenção do status quo. Nesse sentido, as Leis de sesmarias do período colonial cumpriram o papel de estabelecer critérios numa sociedade sem critérios. A Lei de terras veio para coroar, até os dias atuais, como deveria permanecer as relações no campo. As sucessivas Constituições Federais passaram a reproduzir o ideário liberal da coroa portuguesa e, por tabela, as Estaduais. Permaneceu a lógica intervencionista do Estado em defesa dos latifúndios. Quando da aprovação do novo regulamento de terras devolutas da União, através do decreto republicano de 5 de março de 1913, como em uma cantinela, repetiu-se os principais itens da Lei de 1850, mesmo fossem substituídas as palavras por outras. Durante todo o Brasil republicano, os intocáveis latifúndios não foram questionados. Sob essa lógica a Lei 4504, de 30 de novembro de 1964, mais uma vez, corrobora com as prerrogativas instituídas em 1850: a manutenção do sistema de propriedade. A lógica capitalista no Brasil concentra sua força no processo de manutenção/restauração das condições de exploração existente. A herança brasileira da colônia e império vigora, reacende a cada reordenação da legislação. Mesmo a Constituição de 1988, não conseguiu expurgar as forças controladoras do poder estatal presentes sob o poder do latifúndio agrário-exportador.
O eterno complexo de colônia, de submissão e subserviência ao capital internacional se torna presente sob a lógica dominante de um capitalismo que não soube ou não quis adentrar em conflitos para, inclusive, eliminar aquilo que seria a marca presente em toda a história brasileira: o latifúndio expropriador. Por essa lógica, mantiveram-se negros, índios, mestiços, a população empobrecida, distante do acesso a terra. Ao mesmo tempo, urbanizaram-se as cidades, com milhares de camponeses sem perspectiva de vida. A urbanização forçada esteve presente em toda a história brasileira e, mas do que nunca, preserva a sua característica de exclusão social. Tanto o campo como a cidade, encontra-se permeados pela lógica da exclusão e de submissão. A “Lei para inglês ver” originária do início do século XIX, ainda se faz presente quando a questão é a defesa da reforma agrária, dos assalariados do campo, da política fundiária em geral, do uso de empréstimos aos camponeses.
REFERENCIA BIBLIOGRÁFICA
BAUSBAUM, Leônico. História sincera da República: das origens até 1889. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1957.
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário. Coletânea de legislação e jurisprudência agrária e correlata. Organizadores Joaquim Modesto Pinto Junior, Valdez Farias. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário, Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural /NEAD Especial, 7. v. I,II,III, 2007.
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 33 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2004.
LINHARES, Maria Yedda Leite, SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. História da agricultura brasileira: combates e controvérsias. São Paulo: Brasiliense, 1981.
PIRIS, J. M.; COSTA, I. del Nero da. O capital escravista-mercantil: caracterização teórica e condições históricas de sua superação. Revista Estudos Avançados, v. 14, n. 38, 2000.
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. 17 ed. São Paulo: Brasiliense, 1981.
RIBEIRO, Maria Luíza Santos. História da Educação Brasileira: a organização escolar. 18 ed. ver. ampl.. Campinas: Autores Associados, 2000.
SPOSITO, Fernanda. Indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845). São Paulo: USP, 2006(Dissertação de mestrado).
SODRÉ, Nelson Wernek. Panorama do segundo império. 2ed. Rio de Janeiro: GRAFHIA, 1998.
THOMAS, Georg. Política indigenista dos portugueses no Brasil (1500-1640). São Paulo: Edições Loyola, 1982.
[1] Mestre em Sociologia/UFPB; professor assistente em Sociologia pela Universidade Estadual de Alagoas-UNEAL. Out/2008.
[2] O processo de organização fundiária em terras brasileiras teve por base as determinações das Ordenações manuelinas (1521). Dom João III cria as capitanias hereditárias e com elas a possibilidade de distribuição de terras em forma de sesmarias. Até 1548, o regime fundiário acompanhava as ordenações. Entretanto, a partir de Tomé de Souza, a concessão de terras foi organizada com a condição de que passasse a construir engenhos de açúcar e as terras apenas poderia ser distribuída a quem pudesse cultivar ou realizasse atividades de proteção necessária a defesa. Estava posta a condição para que houvesse ampliação da propriedade que, posteriormente, se constituiria a forma usual de acesso a terra.